Todas as tardes, o músico Lúcio Yanel, de 72 anos, entoa serenatas para a esposa. Entre uma canção e outra, o artista busca tranquilizar o olhar perdido e acalentar o choro de Sueli de Fátima Teixeira, que atualmente enfrenta a fase mais grave da doença de Alzheimer.
O idoso encontrou nas apresentações uma forma de se aproximar da mulher, que, segundo o artista, tem vivido em um mundo distante.
Casado há 25 anos com Sueli, o músico conta que tem enfrentado períodos difíceis. A esposa do artista não consegue mais andar, falar ou se alimentar sozinha. “Ela precisa de ajuda para tudo e passa o dia inteiro na cama”, conta à BBC News Brasil.
Na última quarta-feira (23), o artista, sempre discreto em relação à companheira, publicou a primeira foto dos dois juntos desde que a doença da mulher atingiu o nível mais grave.
“Para que me sinta ao seu lado, minhas serenatas diárias”
Ele postou uma foto na qual se apresentava com seu violão para a companheira. Junto com a imagem, fez um desabafo. “Já faz alguns anos que o maldito Alzheimer vai me roubando a minha amada companheira. E para que me sinta ao seu lado, minhas serenatas diárias. Tu és o meu melhor público”, escreveu.
A publicação de Lúcio viralizou nas redes sociais. No Facebook, teve mais de 50 mil reações e 59 mil compartilhamentos.
Nos comentários, internautas parabenizaram o artista. “O amor sempre vai superar as intempéries da vida”, escreveu um homem. “A emoção ao ler isso é imensa e quase não cabe no peito”, disse uma mulher.
A repercussão surpreendeu Lúcio. “Publiquei meio que sem querer, não imaginei que tantas pessoas fossem ver. Eu sempre vivia ocultando a situação da minha mulher, porque é muito melindroso para um artista fazer esse tipo de publicação. As pessoas podem pensar que é algo piegas”, comenta.
“Estou acompanhando minha esposa sofrer com o Alzheimer”
“Mas cansei de aparentar uma alegria. Estou sempre, digamos, fingindo uma alegria que não existe na minha atual fase da vida. Estou acompanhando minha esposa sofrer com o Alzheimer e não tenho muito o que fazer para evitar isso”, lamenta.
O Alzheimer é considerado o tipo mais comum de demência que existe no mundo. Conforme estudos sobre o tema, estima-se que 5% da população acima dos 65 anos possa desenvolver a doença. Após os 80 anos, a estimativa sobe para 30%.
As causas da doença não são completamente conhecidas. Os tratamentos disponíveis ajudam a aliviar os sintomas, mas não impedem a evolução do Alzheimer.
A família
Lúcio nasceu na Argentina e vive no Brasil há 40 anos. Ele conheceu a esposa no início dos anos 90. O artista conta que havia ficado viúvo há um ano quando se apresentou em uma casa de shows em Porto Alegre (RS). Sueli era chef de cozinha do estabelecimento. O músico relata que se encantou com a esposa desde a primeira vez em que a viu.
“Eu gostei muito dela. Além disso, queria uma pessoa que me desse segurança e um suporte emocional, porque havia ficado viúvo. Logo fomos morar juntos, com os nossos filhos”, relembra.
Lúcio tinha cinco filhos e Sueli tinha três. Um ano após se conhecerem, nasceu o caçula e único filho deles juntos. Na época, eles se mudaram para Caxias do Sul (RS), onde vivem até hoje.
Antes do Alzheimer, o músico diz que a forma que Sueli encontrava para agradar a família era por meio das comidas. “Ela sempre fazia as receitas que aprendia. Era uma ótima chef de cozinha”, diz o artista.
Sintomas de Alzheimer
Foram justamente as comidas que indicaram os primeiros sinais do Alzheimer de Sueli. “A minha mãe começou a esquecer receitas. No início, parecia que era algo comum, mas depois foi se intensificando. explica Pedro Giles, de 24 anos, filho caçula do casal.
“O humor dela mudou muito e ela passou a ficar nervosa com frequência. Em razão disso, ela foi procurar ajuda médica”, diz ele.
Em 2008, após diversos exames, um neurologista apontou o diagnóstico de Sueli: Alzheimer. A doença se manifestou de modo precoce na mulher, que na época tinha 52 anos. “O mais comum é que a doença comece a se manifestar a partir dos 65 anos”, explica a psiquiatra Regiane Garrido.
Segundo a médica, o Alzheimer de início precoce costuma evoluir mais rapidamente. “Supõe-se que as alterações neuroquímicas levem anos para se manifestar como sintomas, por isso comumente acontece em idades mais avançadas. Mas quando é um paciente mais novo, ele perde as funções neurológicas em um curto espaço de tempo”, pontua.
Assim como outros casos de Alzheimer precoce, Sueli teve um avanço rápido da doença. Logo ela começou a se esquecer de pessoas e de cuidados básicos. “Em cinco anos depois da descoberta da doença, ela não sabia mais como tomar banho e esqueceu até mesmo como fazer as necessidades mais básicas. Foi muito difícil para a gente lidar com isso”, diz Pedro.
Sueli fez tratamento e recebeu ajuda médica. Mas os sintomas não diminuíram. Ela foi perdendo a coordenação, não conseguiu mais falar e, em 2015, parou de andar. Hoje, não tem mais os movimentos sobre o corpo. “Ela não tem mais domínio sobre si”, diz Lúcio. Em razão disso, ela passa os dias deitada na cama de um quarto da residência em que mora com o marido e o caçula.
A rotina com a doença
Desde o início do Alzheimer, Lúcio e Pedro estiveram ao lado de Sueli. “Eu costumo dizer que não vivi o que outras pessoas da minha idade viveram, porque quase sempre não podia sair, para ajudar a cuidar da minha mãe. Mas não me arrependo de nada disso”, conta o caçula.
Lúcio deixou parte da carreira como músico para se dedicar à mulher. Ele continua fazendo apresentações pelo Brasil, mas em menor quantidade. “Preciso cuidar dela, então não posso deixá-la sozinha”, explica o artista. Quando o pai tem que viajar, Pedro pede licença no serviço ou na universidade, para cuidar da mãe integralmente. Eles também contam com uma cuidadora, que os auxilia no período da tarde.
Antes de Sueli perder totalmente os sentidos, chegou a manifestar que não se recordava do marido e do filho. O esquecimento não os incomodava. “Muitas vezes, ela apontava para a janela de casa e dizia que o “Pedro” estava andando de bicicleta na rua. A lembrança que ela tinha de mim era quando eu era criança”, relata o estudante.
Apesar do Alzheimer, Lúcio prefere acreditar que a esposa se recorda deles, mesmo que não tenha manifestado isso nos últimos anos. “Tenho pra mim que ela me reconhece, porque eu peço um beijo, me aproximo e ela me beija. Ela também beija nosso filho na bochecha”, diz o músico.
“Eu penso que ela se lembra da gente. Ao longo dos anos, somente nós cuidamos dela. Ela só enxergou a gente e ouviu a nossa voz. Ela só sentiu o nosso abraço”, acrescenta.
As serenatas
Em meio à ausência de medicamentos que possam evitar a evolução do Alzheimer, Lúcio conta que optou por ter atitudes carinhosas com a mulher, que possam fazer com que esse período da vida dela seja mais tranquilo. “Desde que a minha esposa descobriu o Alzheimer, faço serenatas para ela praticamente todos os dias. Fiz isso de forma intuitiva, para alegrá-la. Depois, descobri que é uma boa alternativa para aliviar os sintomas da doença”, comenta.
Ele conta que a esposa costuma chorar em grande parte do dia, mas fica em silêncio quando o marido se apresenta para ela. “Os médicos disseram que choro é uma das características que podem ser apresentadas por pacientes com Alzheimer avançado. Em alguns momentos, ela chora porque algo a incomoda e logo resolvemos o problema. Em outros, não há nenhum motivo”, comenta Lúcio.
“Mas sempre que ouve as serenatas, ela para de chorar. Por isso posso dizer que ela gosta das minhas canções”, diz o artista.
Com o violão, ele costuma cantar músicas do folclore pampeano – pertencente à cultura sulista— e clássicos do sertanejo. “São músicas que sei que ela sempre gostou”, explica Lúcio. O artista também costuma fazer brincadeiras bem-humoradas para a esposa. “Eu sempre faço palhaçadas, para alegrá-la. Ela não demonstra reação, mas ao menos fica mais tranquila.”
Regiane Garrido ressalta que as serenatas de Lúcio não trarão a cura para a doença da esposa. No entanto, são importantes alternativas para confortar a mulher. “É comum que os pacientes gostem das músicas, principalmente aquelas que ouviam na mocidade. A memória afetiva é uma das últimas a se perder. Ninguém vai melhorar por causa disso. Mas todo conforto a esses pacientes é bem-vindo”, diz.
As serenatas para a esposa costumam ser feitas no quarto dela. “Sento em uma cadeira ou na cama e canto”, diz. Lúcio comenta que não tem forças para levar Sueli para o pátio de casa, por isso, na maioria das vezes, faz as apresentações dentro da residência. “Somente canto fora do quarto quando meu filho está em casa no período da tarde e consegue levá-la para fora.”
Em uma das recentes vezes em que levou a mãe para fora de casa, Pedro fotografou a serenata do pai. Foi então que Lúcio decidiu fazer a publicação que viralizou. “Eu não imaginei que ele fosse usar aquela imagem, porque meu pai é artista, sempre está arrumado nas fotos e naquela estava sem camisa. Mas ele me disse que não tinha problema estar daquele jeito, porque queria compartilhar aquele momento”, relata o jovem.
Respostas
Com o sucesso da publicação, Lúcio espera conseguir respostas que possam auxiliá-lo a melhorar a qualidade de vida da esposa.
“Tudo aponta que essa doença não tem cura. Não posso esperar muita coisa. Espero que a medicina avance e encontre respostas no futuro. Hoje, quero ajudá-la a não sofrer tanto. Mas não quero nenhum medicamento que a deixe ‘grogue’ e, praticamente, morta, porque não quero vê-la assim”, diz.
“Mesmo com todas as dificuldades, eu jamais vou pensar que quero que Deus a leve. Por mais difícil que seja, quero que ele deixe a minha esposa aqui, porque eu me encarrego de cuidar dela.”
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