A obesidade infantil é resultado de um conjunto de fatores, desde a falta de amamentação adequada nos primeiros meses de vida até hábitos alimentares pouco saudáveis. O problema também passa por questões socioeconômicas e sabe-se que as preferências alimentares são influenciadas pelo ambiente, preço, disponibilidade e acessibilidade. Nesse ponto, as populações de baixa renda são as mais afetadas, com menos acesso a cuidados de saúde e mais propensão a desenvolver comorbidades associadas à doença.

Unindo parte dessas causas, uma pesquisa brasileira investigou a dependência alimentar em crianças com excesso de peso e de baixa renda em duas escolas públicas da capital paulista. Com base na resposta a um questionário de frequência alimentar, composto por 88 itens, o estudo identificou que 95% das 139 crianças participantes, todas com sobrepeso ou obesidade, apresentaram pelo menos um sintoma de vício em comida. Do total, 24% foi diagnosticado com a condição, sendo que o consumo de açúcar e de alimentos ultraprocessados era maior nessa parcela.

“Ultraprocessados podem causar vício alimentar. Esses alimentos foram feitos para seduzir [a criança] e identificamos o principal alimento que causa esses sintomas, que é o biscoito. A criança começa o ano consumindo uma ou duas bolachas e no final está comendo o pacote inteiro”, observa a doutora em nutrição Andrea Filgueiras, pesquisadora do departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e uma das investigadoras do estudo.

Entre os sintomas identificados, a abstinência era o mais prevalecente, manifestado por 71% das crianças. Em seguida, com 69% de incidência, veio uma redução ou abandono de atividades sociais, ocupacionais ou recreativas importantes devido ao desejo de consumir algum alimento.

A nutricionista Priscila Maximino, pesquisadora do Instituto Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil, pondera que nenhum alimento é perigoso e poderia desencadear compulsão alimentar, que é uma doença psiquiátrica. “Quando se fala em vício, imprimimos uma condição patológica, mas que não se trata com medicamento. O que ajuda é promover um ambiente alimentar e de estilo de vida diferentes”, diz a especialista, membro da Sociedade Brasileira de Alimentação de Nutrição (Sban).

É preciso destacar que não existe uma relação de causa e consequência entre o consumo de ultraprocessados e o desenvolvimento de vício no alimento. Embora a comida contenha substâncias que vão mudar a química do cérebro, é mais importante focar e mudar a relação da criança com a comida. “Não ensinar a comer quando está feliz ou quando está triste, não usar o alimento como recompensa ou consolo e estimular a boa relação com a comida sem fazer associação com a imagem corporal”, orienta Priscila.
A influência do ambiente no vício alimentar

Além de investigar o vício em comida, os pesquisadores da Unifesp promoveram intervenções nas escolas participantes do estudo. As duas instituições receberam atividades de aconselhamento psicológico, oficinas de nutrição e atividades físicas supervisionadas, uma durante seis meses e outra durante 16 meses.

“A gente queria ver se nossa entrada na escola já seria motivo de mudança no ambiente e se isso refletiria na mudança de hábito [alimentar]. A escola em que ficamos menos tempo, mas onde a direção acolheu o projeto de fato e quis mudar, teve o consumo de ultraprocessados reduzido significativamente. Na outra, os resultados não foram tão positivos”, explica Andrea.

Porém, ela destaca que onde a intervenção durou mais tempo houve um resultado mais favorável em relação ao vício alimentar. Observou-se que as atividades oferecidas nas escolas se mostraram positivas e abrem um novo caminho para a prevenção e o tratamento do excesso de peso em crianças.

Outro fator que também conta é a família. Um estudo internacional de 2017 identificou que crianças com sintomas mais elevados de dependência alimentar tinham pais com as mesmas características. Aquelas com vício tinham genitores que exerciam muita restrição alimentar ou pressionavam muito os filhos para comer. Por outro lado, eles tinham poucas práticas de monitoramento quanto ao que as crianças comiam.

A psicóloga Desirée Cassado, mestre em psicologia experimental e especialista em terapia comportamental, afirma que família e escola são “absolutamente essenciais” em qualquer mudança comportamental numa criança, especialmente em termos de alimentação. “É extremamente importante que família e escola sejam lugares onde a oferta de alimentos seja saudável (com poucos processados), onde as crianças são incentivadas a se movimentar, a comer com atenção plena na comida”, enumera.

Para que haja uma boa relação com a comida, a especialista indica ter uma rotina estruturada de sono, alimentação e atividade física e que a criança seja exposta a uma variedade rica de alimentos. “Não podemos esquecer de que ela precisa ter uma vida rica em experiência, em interações, para que possa desenvolver o repertório necessário para lidar com situações difíceis e emoções intensas”, completa.
Dependência alimentar e emoções

Para Desirée, não podemos dizer que há um vício alimentar exclusivamente desencadeado por fatores emocionais, pois o comer transtornado (compulsão ou anorexia, por exemplo) tem inúmeras variáveis. Porém, não se pode deixar de lado que essa necessidade vital de se alimentar também envolve um complexo circuito neurológico relacionado à sensação de bem-estar e alívio.

“O prazer que sentimos ao comer teve sua função selecionada pela evolução: só sobreviveram aqueles que sentiam prazer ao comer e que, por isso, buscavam alimento com afinco. Isso quer dizer que somos todos, de certa forma, descendentes de ‘viciados em comida'”, contextualiza a psicóloga. E para desencadear algum transtorno alimentar, duas variáveis entram em ação: estar exposto à crescente oferta de alimentos processados e ultraprocessados e a vulnerabilidade psicológica.

“Alimentos processados são feitos com concentrações de gordura e carboidratos que não existem na natureza com um único objetivo: estimular nosso circuito neuronal relacionado ao prazer e alívio. Eles aumentam as chances de consumo e podemos não estar conscientes, mas muitas de nossas escolhas são feitas com o objetivo de obter alívio e prazer imediato”, explica Desirée.

Diante disso, uma história individual em que o prazer e satisfação proporcionados pela comida ganham papel central na regulação emocional é passível de um transtorno alimentar. “Quando isso acontece, alimentar-se passa a ter função de promover alívio em momentos de tensão, relaxamento em momentos de ansiedade, prazer em meio à tristeza e assim por diante.”

Por isso, as especialistas ouvidas pelo E+ reforçam a importância de uma atenção voltada mais para a relação entre comida e saúde. Somado a isso, é preciso haver uma mudança nos ambientes em que a criança vive, começando pela família. “Os pais não podem perder a liderança na escolha [alimentar] dos filhos e devem investir na educação alimentar”, resume Priscila.

TERRA.COM