Era 11 de abril quando ele segurou as caixas como uma criança que recebe um presente de aniversário. Com uma máscara no rosto, abriu-as cuidadosamente para retirar de dentro os cinco ventiladores pulmonares que seriam instalados no hospital em que trabalha.
Mas o destino lhe pregou uma peça. Nove dias depois de ter aberto as caixas, o médico se transformou no primeiro paciente do hospital a ter que usar os ventiladores pulmonares. Internado no dia 20 de abril com diagnóstico de Covid-19, ele passou 20 dias no hospital, sendo 15 em um leito de terapia intensiva, 10 deles intubado.
Por questões familiares, este médico pediu para não ter o nome divulgado. Seus pais, que enfrentam problemas de saúde, não foram informados sobre a sua contaminação por Covid-19 e sua internação. Por isso, ele será identificado nesta reportagem com o nome fictício de José.
José tem 50 anos, é médico intensivista e atende em um hospital particular no sul da Bahia.Ele lembra com carinho do dia quem que chegaram os ventiladores pulmonares para o tratamento de Covid-19. Ao retirar o equipamento da caixa, olhou para os colegas e comemorou: “Temos uma máquina retada”.
Mas não chegou a colocar em prática o desejo de atuar na linha de frente contra o novo coronavírus. Antes de chegar o primeiro paciente, ele se descobriu infectado, assim como outros colegas médicos e enfermeiros.
Passou a cumprir quarentena em casa. Ficou isolado em um quarto, separado da mulher e filhos. Mas não demorou para que começasse a sentir sintomas como perda de apetite e dificuldade de respirar.
“Comecei a sentir sinais de fadiga e entendi que, em casa, não conseguiria reverter o quadro. A doença iria me vencer se não fosse para o hospital”, disse. Arrumou uma pequena mala e seguiu para o mesmo hospital em que trabalha e onde ajudou a implantar os leitos para Covid-19.
Nos primeiros dias, o principal baque foi a solidão. Mesmo em meio a colegas de trabalho, sentia falta de ter contato mínimo com a família. Mas, ciente dos riscos, resignou-se.
Hoje, ri ao lembrar do trabalho que deu aos colegas médicos e enfermeiros: “Devo ter sido um dos pacientes mais chatos que eles tiveram”, conta. Por ser médico, a todo momento ele perguntava como estavam sua pressão, saturação de oxigênio no sangue e os batimentos cardíacos.
A dificuldade de respirar, contudo persistiu mesmo com a fisioterapia. Após relatar o avanço dos sintomas para o colega responsável pela UTI, que também é seu amigo, este tomou a decisão que intubá-lo. “Eu só disse: coragem, vamos lá. E fui para o tubo.”
Inicialmente, achou que a intubação seria rápida, no máximo um ou dois dias. Mas acabou permanecendo dez dias respirando com a ajuda dos aparelhos -o que só descobriu depois, já que havia perdido a noção do tempo.
“Nessa hora passa um filme na sua cabeça. É uma vivência triste, traumática, mas, ao mesmo tempo, bela, porque traz um aprendizado. Você sai outra pessoa, é impossível você sair igual”, afirma.
Sem visitas, sem poder se mexer ou levantar, só resta ao paciente pensar: “Você pensa muito. Pensa nas oportunidades que você teve e se questiona se você as mereceu. Porque a vida é linda, meu irmão. A vida é muito linda e tudo que você quer voltar é para ela”.A ele, só restou reiterar a confiança que tinha nos seus colegas e comemorar cada passo dado em sua recuperação.
Primeiro, foi extubado e passou a ter uma respiração complementar menos invasiva. Voltou a fazer exercícios respiratórios na fisioterapia e foi, pouco a pouco, recuperando sua capacidade inspirar e expirar. Até que chegou o dia em que o oxigênio suplementar foi desligado.
“Foi só aí que eu pensei: pronto, acabou. E finalmente consegui relaxar”, lembra o médico. Seu primeiro prazer foi sentar em uma cadeira de rodas e tomar banho no chuveiro. O segundo foi escovar os dentes: “Depois de tantos dias com um tubo na boca, só pensava como aquilo era bom. Escovar os dentes é uma delícia”.
Depois de três dias, saiu da UTI e seguiu para a enfermaria. Com mais três dias, conseguiu ter força no corpo para levantar. Colocou como meta que só sairia do hospital caminhando.
E assim aconteceu. Nesta quinta-feira (7), José deixou o hospital caminhando pela porta da frente, onde foi recebido com balões e cartazes por colegas.
“O mais bonito foi sentir a luz do sol. Isso eu nunca vou esquecer. Quando eu cheguei na rua e senti o ar puro e o calor do sol, passei a agradecer por eles todos os dias. A gente se apega a essas pequenas coisas”, diz.
Em casa, ainda aguarda o resultado do novo teste que fez para saber se está curado da Covid-19. Enquanto isso, permanece isolado. Ainda não conseguiu abraçar ou beijar a mulher e os filhos.
Na saída do hospital, chegou a trocar o uniforme de paciente pelo jaleco, mas foi só pelo simbolismo. Antes de voltar a trabalhar, ainda precisa superar a fraqueza dos músculos e recuperar a motricidade, processo que deve demorar, no mínimo, 30 dias.
Mesmo assim, diz que não consegue ficar parado. Na última sexta-feira (8), passou o dia ao telefone buscando doações de equipamentos de proteção individual para o hospital. Também aproveitou os últimos dias para refletir sobre tudo o que passou e as lições que devem ser tiradas no pós-pandemia.
“É uma experiência que não desejo para ninguém, é muito difícil. Quando tudo isso passar, espero viver em um mundo em que as relações se tornem mais fraternas, mais harmônicas. Não é possível que a gente saia desse mundo doido em que estamos e volte a ser tudo como era antes.”