O ministro Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) recorreu a um parecer aprovado pelo então presidente Michel Temer (MDB) para devolver à Funai 17 processos de demarcação de terras indígenas que estavam no órgão à espera de uma decisão do ministro. A pasta reconhece que devolveu cinco processos.
Na prática, a medida representará ainda mais demora nas demarcações e jogam dúvidas sobre as terras, municiando partes contrárias às demarcações.
Pelo menos um dos processos teve uma decisão favorável do STJ (Superior Tribunal de Justiça), relacionado à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, na Bahia, com cerca de 5.000 indígenas. Em 2016, os ministros do tribunal decidiram que nada impede a continuidade da demarcação do território.
Pelo decreto que regula as demarcações no país, Moro teria três opções sobre os processos que devolveu: assinar uma portaria declaratória, um passo antes da homologação presidencial, encaminhar o processo à Casa Civil da Presidência para a assinatura de um decreto de homologação pelo presidente Jair Bolsonaro ou solicitar diligências para tirar dúvidas.
Bolsonaro já afirmou diversas vezes que não demarcará mais “nenhum centímetro” de terra indígena no país.
Nos ofícios de devolução enviados à Funai, Moro argumenta que a consultoria jurídica do ministério “sugeriu a devolução” dos processos para a Fundação Nacional do Índio “avaliar, ponto a ponto, o cumprimento das diretrizes fixadas no parecer” adotado por Temer em 2017 a partir de uma manifestação da AGU (Advocacia-Geral da União).
O parecer de Temer impõe a aplicação administrativa do chamado “marco temporal”, uma interpretação jurídica não prevista na Constituição.
Segundo essa tese jurídica, os indígenas que não estavam em suas terras em outubro de 1988 (data de promulgação da Constituição) ou que não lutaram judicialmente por ela não teriam mais direito algum sobre as terras, ainda que sobre elas existam pareceres antropológicos demonstrando que pertenceram a seus antepassados.
A então advogada-geral da União, Grace Mendonça, emitiu um parecer para concordar com o “marco temporal”, decisão tomada a partir de votos e decisões isoladas de alguns ministros ou de turmas -o assunto ainda não passou pelo plenário do STF (Supremo Tribunal Federal).
Com isso, uma série de adiamentos e entraves passou a ocorrer com os processos de demarcação de terras indígenas tanto na Funai quanto no Ministério da Justiça. A tese é atacada por advogados especializados em direitos indígenas.
Líderes indigenistas ouvidos pela reportagem sob a condição de anonimato afirmam que alguns dos mesmos processos devolvidos por Moro já haviam sido restituídos anteriormente e analisados, inclusive sob a ótica do parecer de Temer e com participação da consultoria jurídica do ministério.
Desde a posse de Bolsonaro, em janeiro, a Funai tem manifestado desinteresse em ações judiciais sobre terras indígenas, tachando-as de “invasões”.
Em carta aberta no último domingo (26), os caciques tupinambás reunidos na Bahia sob a liderança do cacique Babau, um dos principais nomes do movimento indígena no país, denunciaram a devolução de Moro como uma “violação de todos os direitos constitucionais dos povos indígenas” e que, “numa decisão arbitrária”, “decretou o fim da existência do nosso povo”.
Segundo os caciques, o relatório já foi julgado “inúmeras vezes” pelo Judiciário brasileiro em favor da demarcação. “Não há nenhum impedimento jurídico que impeça a demarcação imediata. Repudiamos essa atitude do ex-juiz ministro Sergio Moro que vai contra a decisão da segunda maior instância do Judiciário brasileiro”, diz a carta.
Segundo eles, Moro viola os direitos constitucionais dos indígenas. “Ele decretou o fim da nação mais antiga deste país, pois seu desejo é nos extinguir, mas, para isso, ele terá que matar toda nação tupinambá, porque ninguém pode expulsar o tupinambá de seu território.”
A reportagem pediu na última sexta-feira (24) que o Ministério da Justiça encaminhasse os nomes dos cinco processos devolvidos em 2019, mas não houve resposta até a publicação deste texto.
Reportagem recente do jornal Folha de S.Paulo mostrou que, fiel ao discurso de campanha e aos ruralistas, Bolsonaro assinou, em dezembro, medida provisória que abre caminho para a legalização de terras griladas, principalmente na Amazônia, e congelou a reforma agrária e as demarcações de terras indígenas e quilombolas neste primeiro ano de governo.
OUTRO LADO
Em nota à reportagem, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que “seguirá o procedimento previsto na legislação pertinente. De acordo com a Constituição Federal vigente, os povos indígenas detêm o direito originário e o usufruto exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
A nota repetiu os termos que constam dos ofícios assinados por Moro.
“Os processos estão fisicamente na Funai e foram devolvidos visando avaliar, ponto a ponto, o cumprimento das diretrizes fixadas no parecer GMF nº 005/2017, aprovado pelo presidente da República [Temer], referentes à demarcação de terras indígenas, conforme sugestão apresentada pela consultoria jurídica junto ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.”
O ministério concordou que “as fases do procedimento demarcatório das terras tradicionalmente ocupadas são definidas pelo decreto 1.775/96 da Presidência da República”.
Abiel Santos, 51, presidente da Aspiaub (Associação dos Pequenos Agricultores de Ilhéus, Una e Buerarema), disse apoiar a decisão de Moro. A entidade trava uma disputa com os tupinambás para tentar impedir a demarcação.
“Nós concordamos porque tem que dar um basta nisso de invadir as propriedades. A verdade tem que prevalecer. Queremos que tudo seja analisado a fundo, solicitamos ao governo mais estudos técnicos”, disse Santos.
Ele afirmou que os indígenas não têm direito sobre as terras e que as mesmas reivindicações apresentadas ao governo Bolsonaro também foram levadas aos governos Michel Temer (2016-2018) e Dilma Rousseff (2011-2016). Disse ainda que a decisão do STJ, citada na carta aberta dos caciques tupinambás, “não foi sobre o mérito, foi uma decisão sobre um mandado de segurança que impetramos” e que o STJ “decidiu que não era o caminho jurídico possível, foi isso”.
O advogado que atuou em defesa dos tupinambás no mesmo processo no STJ, Rafael Modesto, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), disse que a decisão “representou uma das mais importantes acerca do direito territorial dos tupinambás”.
“Ela revogou uma liminar e a unanimidade confirmou a manutenção do processo de demarcação do povo. Em outras palavras, manteve a coação legal ao ministro da Justiça, determinando que as provas da ocupação tradicional são robustas e que finalizasse o procedimento demarcatório. Também as alegações dos autores da ação de incidência do ‘marco temporal’, conhecida tese anti-indígena, não foram aceitas pela Primeira Seção daquela corte”, disse o advogado.
OS 17 PROCESSOS DEVOLVIDOS À FUNAI EM 2019
Terras que aguardavam portaria declaratória:
Vista Alegre (AM)
Tuwa Apekuokawera (PA)
Sambaqui (PR)
Marú (PA)
Pindory/Araçá-Mirim (SP)
Guaviraty (SP)
Kanela Memortumré (MA)
Cobra Grande (PA)
Barra Velha do Monte Pascoal (BA)
Tupinambá de Olivença (BA)
Wassú-Cocal (AL)
Paukalirajausu (MT)
Terras que aguardavam decreto de homologação:
Toldo Imbu (SC)
Rio Gregório (AC)
Cacique Fontoura (MT)
Xukuru-Kariri (AL)
Arara do Rio Amônia (AC)
(FOLHAPRESS)