Revoltadas com a absolvição de André Aranha, empresário acusado de ter estuprado a influencer Mariana Ferrer em uma boate de Florianópolis (SC) em 2018, mulheres da capital alagoana se programam para um ato neste sábado (7), a partir das 14h, em frente ao Centro Educacional de Pesquisas Aplicada (Cepa), na Avenida Fernandes Lima, que seguirá até à Praça Centenário, no Farol, em Maceió.

Na convocação, as organizadoras pedem aos participantes para vestirem roupas pretas ou lilás e levarem cartazes, além do uso de máscara de proteção facial, devido à pandemia.

De acordo com uma das integrantes do ato, a médica Fernanda Macedo, que faz parte do grupo Resistência Feminista e da coerente Resistência do PSOL, o caso da Mariana Ferrer traz a tona uma questão extremamente enraizada na sociedade, e que tem a ver com a forma que o estado e sistema jurídico enxergam a mulher.

Ela apontou que, conforme o 13º Anuário de Violência divulgado em setembro do ano passado, houve um crescimento de 5% nos casos de estupro no país em 2018. Foram 66 mil casos com uma média de 180 registros por dia, 54% deles envolvendo crianças e adolescentes até 13 anos, violentadas dentro do seu circulo de convívio.

Os números são alarmantes, mas podem ser ainda maiores, uma vez que, historicamente, esse tipo de violência tem baixo índice de denúncia. Isso porque as mulheres têm medo de retaliações por parte de seus agressores e falta de confiança nas instituições.

“Há uma ‘culpabilização’ das vítimas, sendo tratadas como rés. Não se ensinam aos homens o respeito ao corpo da mulher. Eles têm essa ideia de que o corpo dela é passe-livre, então tudo isso é fruto da cultura do estupro enraizada na sociedade, que no Brasil é fruto da escravização, que perpassa até os dias de hoje. O estupro também tem raça e classe social, atinge mais mulheres negras e pobres”, diz Macedo.

Para a médica, falar dessa cultura é também falar da libertação da mulher, da reapropriação do corpo, mas também de políticas públicas no enfretamento das ideias conservadores em relação à mulher. “Se a mulher usa certas roupas e bebe muito fora de casa não quer dizer que ela esteja pedindo para ser estuprada… Isso precisa ser combatido nas escolas e combater o Bolsonarismo, que é hoje o grande propagador de ideias conservadoras, que é um governo machista, misógino”, declarou. “Queremos justiça no sentido de condenar o agressor de Mariana Ferrer e o juiz que permitiu a dupla violência, pelo fim da cultura do estupro e gritar fora Bolsonaro”, concluiu.

Bruna Emanuelly Rocha da Silva, estudante de Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), também da organização do evento deste sábado, diz que a motivação para o ato foi a revolta diante do caso. “O estupro culposo é um verdadeiro retrato da misoginia presente em nossa sociedade. A absolvição do estuprador nos leva a entender o porquê de tantas mulheres não denunciarem inúmeros casos de abusos que sofrem, não há justiça nesse país que nos proteja de fato”.

Para Bruna, as cenas da audiência de Mariana Ferrer são de embrulhar o estômago. “Uma humilhação severa com a jovem, vinda de um advogado de péssima conduta. Acredito que o sistema judiciário deveria ser um instrumento de acolhimento. Jamais de humilhação.”

Marynara Santos, estudante de pedagogia da Ufal e organizadora do ato, também comunga da mesma opinião. “Gostaria de deixar claro que não tem na sentença o termo ‘estupro culposo’. O réu foi absolvido, pois alegou que não sabia que a Mariana Ferrer estava em posição de vulnerabilidade, no caso que ela não poderia consentir mesmo que quisesse, mas deixando claro que ela não consentiu. O termo ‘estupro culposo’ se deu na mídia, pois ele foi inocentado porque não sabia que estava estuprando…”

“De toda forma, essa sentença foi uma barbárie contra todas as mulheres. Casos como esse silenciam a nossa voz, desqualificam as vítimas, e só faz a cultura do estupro se propagar. Isso só ocorreu porque foi um homem com dinheiro e poder. Por isso que estamos indo às ruas, pois não vamos mais aceitar sermos violadas”, avaliou.

Julia Morgado, estudante de medicina e militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, considera o fato um retrocesso. “Num caso de uma agressão tão brutal, espera-se que a vítima seja tratada com o mínimo de dignidade e respeito. O que ocorreu foi uma inversão dos papéis em que a vítima se tornou a culpada, o agressor tornou-se a vítima. Infelizmente, isso ocorre frequentemente em nossa sociedade. A violência contra mulher muitas vezes é justificada de modo a culpabilizar a vítima, associando o abuso a comportamentos ou roupas que a ela usava.”

Para Julia, a postura da Justiça é machista e operou em benefício do agressor. “O direito tem esses aspectos dúbios que podem ser compreendidos da maneira como convém. No caso, sendo o réu alguém poderoso, pagando caro pelos honorários de advogados que prometem ‘ir até o inferno’ [nas palavras do advogado Cláudio Gastão] pelos seus clientes, fica mais fácil de se safar de uma sentença à reclusão. O mesmo não aconteceria com um agressor pobre”.

Segundo a estudante, todos os ataques que gênero feminino sofre diariamente no país são reflexos de uma sociedade machista, patriarcal e misógina. “Nos últimos anos essa cultura tem se escancarado e institucionalizado ainda mais”.

Ela lembrou de casos, como abuso sexual da garota de 10 anos que engravidou e a repercussão de fundamentalistas religiosos diante do abortamento respaldado juridicamente. “A portaria 2.282 do Ministério da Saúde impõe obstáculos ao abortamento nesses casos, e vemos que estamos enfrentando muitos retrocessos.”

PETIÇÃO ON-LINE

Uma outra forma de apoiar a causa é assinar o abaixo-assinado que pede Justiça a Mariana no site de petições Change.org. A petição já conta com mais de 4 milhões de assinaturas e pode ser assinada pelo link: https://bit.ly/34ZiCcd .

“Mariana Ferrer teve sua vida devastada”

Maria Silva ressalta sua indignação com a absolvição do criminoso e com a condução do julgamento (Foto: Assessoria)

A secretária de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos (Semudh) em Alagoas, Maria Silva, destaca que a jovem Mariana Ferrer teve sua vida devastada não somente pelo estupro sofrido, o que já seria em si um grande trauma. “Mas pela sequência de violências a que teve que enfrentar culminadas com o lamentável episódio protagonizado por parte do sistema judiciário e por profissionais advogados, que usaram da falta de escrúpulos para intimidar e humilhar a vítima”, desabafou.

“Como secretária de Estado da Mulher e dos Direitos Humanos, indígena, negra e periférica, sou antes de tudo solidária a dor de Mariana Ferrer e toda sua família, e mais ainda admiradora da coragem dessa jovem de 23 anos, que venceu enormes barreiras para denunciar o estuprador André de Camargo Aranha”, frisou.

A secretária destacou ainda toda sua indignação com absolvição do criminoso, bem como com o show de horrores que se tornou o julgamento. “Não podemos nos calar. Será a voz uníssona, de mulheres e homens de bem, que não deixaremos essa barbaridade ficar pra história como sendo normalidade de um julgamento”, destacou Maria Silva.

Ela pediu justiça pelo crime e enfatizou que todos devem agir para que se possa mudar essa mentalidade de cultura machista de que ‘tudo pode’, “que continua a achar que a mulher está na sociedade a serviço de sua vontade”, mencionou.

“Todas somos violentadas quando a justiça falha, quando a justiça manda como mensagem a vantagem da impunidade e a humilhação pública, como prerrogativa para as mulheres que têm a coragem de denunciar. Esperamos que as instâncias superiores revertam essa injustiça e essa série de violações cometidas contra a jovem, vítima de estupro”, afirmou.

Para a secretária Maria Silva, a maneira do julgamento de Mariana Ferrer se mostrou a favor da marginalidade, da impunidade e do machismo doentio que ainda imperam na sociedade. “Essa não é a Justiça que acreditamos e merecemos. O meu abraço de acolhimento e afeto à Mariana Ferrer. Vamos acompanhar cada passo, vigilante e firme”, completou Maria Silva.

A nenhum momento o Juiz e o Promotor se manifestaram no processo utilizando o termo “estupro culposo”. Confesso que inicialmente quando vi as notícias nos jornais me causou uma grande estranheza e perplexidade, até porque é difícil de acreditar que um juiz ou um promotor cometeria um erro técnico tão elementar dessa natureza.

“Laudos técnicos não comprovam que influencer estava alcoolizada”

O advogado Marcelo Medeiros explicou que basicamente, o que foi sustentado pelo Ministério Público é que não haveria provas suficientes de que a suposta vítima não estaria em condições de consentir a relação sexual, e para a caracterização do delito seria necessário que o empresário tivesse a intenção de praticar o ato sexual, aproveitando-se da impossibilidade de resistência da vítima.

“Portanto, primeiro se não há provas evidentes nos autos de que a vítima estava realmente impossibilitada de consentir a relação sexual e não há certeza de que o réu se aproveitou dessa situação, então o MP pugnou pela absolvição ante a insuficiência de provas. Sem querer adentrar no mérito do convencimento do magistrado em relação ao cometimento do crime ou não, alguns pontos, segundo a sentença, precisam ser pontuados”, observou.

De acordo com o advogado, laudos técnicos não provaram que Maria Ferrer estava alcoolizada ou sob efeito de droga, para ser considerada vulnerável ao ponto de não ter o necessário discernimento para consentir.

Outro ponto citado por Marcelo Medeiros é que as testemunhas arroladas no processo, que estavam na companhia da Ferrer, afirmaram que a mesma estava consciente durante o período que tiveram contato com ela, um ‘pouco alegre’, mas nada demais.

“Enya Sanches, a primeira pessoa a ter contato com Mariana após ela descer do camarote, contou que as duas conversaram rapidamente, estava bem, normal. Aparentava está bêbada mas nada fora do normal. O segurança do Café de La Musique, Gian Pierre Ribeiro, que naquela noite fazia a vigilância do acesso ao camarote, destacou que Mariana e Aranha subiram no camarote juntos e, após alguns minutos, desceram, primeiro ela, momentos depois, o réu. Ribeiro narrou que a influencer desceu em estado normal e não comunicou nenhuma agressão, de acordo com o juiz”, relembrou.

– No Uber de volta para casa, Ferrer ligou para sua mãe e começou a chorar muito, afirmou o motorista Walton Souza Rabbib. A seu ver, ela aparentava estar sob efeito de “algo”, mas não estava bêbada, pois não tinha cheiro de álcool.

“Então, portanto, por entender que existia dúvidas acerca da culpabilidade do réu e por se tratar de um crime que só se consuma na modalidade dolosa, o MP pugnou pela absolvição pela insuficiência de provas. Na dúvida, absolve-se o réu”, completou.

O CASO

Mariana Ferrer passou por audiência on-line de julgamento em setembro deste ano e, na última terça-feira (3), o vídeo em que aparece sendo humilhada pelo advogado de defesa de André Aranha foi divulgado na internet. Nas imagens, Mariana – que é a única mulher na audiência – chora e implora por respeito logo após o advogado do acusado, Cláudio Gastão da Rosa Filho, mostrar fotos da jovem, afirmando que ela teria posado em “posições ginecológicas” e acusando-a de utilizar o caso e de manipular a sua própria virgindade para promoção pessoal. Ele ainda desqualifica Mariana, afirmando que não gostaria de ter uma filha do “nível” da jovem.

Foi nessa audiência que Mariana se sentiu novamente na condição de vítima, não apenas das agressões do advogado, mas também da negligência da Justiça brasileira, uma vez que o juiz Rudson Marcos concluiu, em sentença, que não havia provas suficientes para condenação.

O ato deste sábado é chamado para mostrar que a absolvição de André Aranha representa um crime contra todas as mulheres.

Fonte: Tribuna Independente / Por Ana Paula Omena

(Foto: Arquivo pessoal)