Todo início de ano é sempre difícil renovar os contratos para o repasse do Fundo Estadual de Combate e Erradicação da Pobreza (Fecoep). A burocracia que cerca a entrada e o acesso ao Fundo, criado em 2015 pelo então governador Ronaldo Lessa (PDT), deu origem a uma infinidade de exigências. Para se ter uma ideia, em média, cada item solicitado tem dez ou mais cobranças de documentos. No governo Renan Filho (MDB), no caso da prestação de contas dos convênios, somado tudo o que é pedido são 112 encaminhamentos de dados. De 2014 até junho foram arrecadados R$ 884,3 milhões sem que o Poder Executivo aponte uma só pessoa dos 800 mil alagoanos que vivem em extrema pobreza e que tenha deixado essa condição.

Isso cria uma dificuldade até para os convênios mantidos com secretarias do próprio governo. Foi o que constatou o deputado Dudu Ronalsa (PSDB), quando em março deste ano cobrou o repasse para a Secretaria Estadual de Prevenção à Violência (Seprev), que ficou por três meses sem receber as verbas destinadas a 37 comunidades terapêuticas que atendiam, à época, 750 pessoas.

O Fecoep é oriundo do acréscimo de 2% do ICMS da comercialização de produtos como bebidas alcoólicas, fogos de artifício, armas e munições, embarcações de esporte (recreio – motores de popa), ultra-leves e asas deltas, rodas esportivas (autos), gasolina, álcool anidro e hidratado para fins combustíveis, entre outros produtos. Na estrutura governamental ele está atrelado à Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão (Seplag), porém, tem suas ações determinadas pela Secretaria de Estado da Assistência Social, por meio do Conselho Integrado de Políticas de Inclusão Social (CIPIS), que é presidido pelo governador do Estado.

São 14 anos de cobranças sem, por exemplo, ter sido criado o Plano Estadual de Combate à Pobreza. Em mais de uma década, os recursos são transferidos para os programas – como o Programa do Leite, por exemplo – sem base concreta de quantas pessoas, de fato, foram excluídas da pobreza, como define a Lei nº 6.558, que o criou.

Conforme apurou a Gazeta, o programa é um sucesso de arrecadação, tanto que no ano passado arrecadou R$ 260 milhões, de acordo com informações do Portal da Transparência. Entretanto, não consegue por meio de dados estatísticos apontar quem e quais são as pessoas que estavam abaixo da linha de pobreza que deixaram essa condição. Em geral, quase sempre quem é incluído já consta do cadastro do governo federal para inclusão em programas sociais como o Bolsa Família.

A única ação direta com recursos do fundo, na atual gestão, ligada à pobreza foi a criação de complexos nutricionais que serviriam para o fornecimento de alimentação saudável. Na prática, assim como o Programa do Leite, na ponta, foi para ação assistencialista, que de acordo com a lei que o criou não está entre os seus objetivos.

Legislativo

Essa falta de foco do programa já foi alvo de críticas dentro da Assembleia Legislativa Estadual (ALE), que até CPI tenta articular para investigar as minúcias que envolvem a arrecadação e aplicação dos valores recolhidos. Não há suspeita de corrupção, mas de uso indevido dos recursos, tornando distante o principal, que seria a inclusão social dos pobres de Alagoas.

O deputado Bruno Toledo (Pros), desde o seu primeiro mandato, questiona como o governo Renan Filho tem se posicionado em relação aos investimentos com recursos do Fecoep. Quando foi anunciada a construção do Hospital Metropolitano com recursos do fundo ele já havia destacado o desvio de finalidade. Quem também contou com recursos do fundo para a sua reforma e ampliação foi o Hemoal de Alagoas.

“O Fundo tem um papel que é importante para garantir efetivas ações de combate e erradicação à pobreza. Ninguém é contra isso. Ocorre que, nesse governo estadual, sem um planejamento que defina claramente o que são as ações nesse sentido, o Fecoep acaba sendo um ‘cofre’ disponível para financiar todo tipo de obra do Executivo, como se tudo se encaixasse no conceito de combate à pobreza. Quando fiz parte do Conselho do Fecoep, já apontava isso. Portanto, minha maior preocupação é com o desvio de finalidade dos recursos que estão ali, pois é dinheiro do contribuinte, já que oriundo do ICMS, o que faz com que o Fundo arrecade bem e possa , com isso, desenvolver ações mais produtivas e mais ligadas ao seu fim, ao motivo pelo qual foi criado. É preciso que o Fundo trabalhe dentro de um planejamento e seja regido por uma legislação para não ficar ao sabor das decisões políticas desse ou daquele governador”, disse Bruno Toledo.

Por conta de sua postura sempre crítica e em defesa do uso correto do Fecoep, ele acabou sendo substituído do conselho criado para definir suas políticas. Mas, o mais importante para o parlamentar era que o governo conseguisse apontar, nos últimos quatro anos, onde a pobreza, em Alagoas, foi reduzida já que os indicadores nacionais apontavam o contrário.

“Veja o que ocorreu recentemente com o Hemoal de Arapiraca. Ao que parece, R$ 600 mil do contribuinte jogados no lixo. O governador Renan Filho precisa sair de dentro das propagandas do governo, do mundo do Instagram, e passar a pensar na Alagoas real. O problema é que quando esse governador é confrontado, ele acha que é tudo pessoal e se irrita, como ocorreu com um jornalista da Gazeta de Alagoas [o repórter Arnaldo Ferreira]. O Fecoep hoje é mal utilizado. É um perigo. Os deputados que cobram um Plano Estadual estão corretos. O Fecoep não é uma lâmpada que o governador esfrega e faz três ou quatro pedidos de obras públicas para um gênio”, concluiu Toledo.

No site da Secretaria de Assistência Social não há indicativos dos beneficiados, nem gráficos, que confirmem que houve redução da pobreza e em quais regiões isso ocorreu. O que é possível afirmar é que houve a inclusão dos mais pobres em programas de assistência “para todos”, já que os equipamentos entregues estarão à disposição para toda a população, entre elas, a de baixa renda e os que estão abaixo da linha de pobreza.

Um outro questionamento, também sem resposta no site, é quando o implemento de políticas de formação que além de combater a forme colocasse os pobres no caminho de alguma formação profissional, para conseguir alguma ascensão e até deixar o programa para a inclusão de outras pessoas, como ocorre hoje com o Bolsa Família.

Em linhas gerais, não é difícil inferir a partir das críticas e poucas informações repassadas, oficialmente, que o Fecoep, ao invés de combater a pobreza, ajudou a sedimentá-la como forma de justificar a própria existência de sua cobrança. Ou seja, mesmo tendo sido criado para uma política de governo, por conta do descolocamento de recursos, vem sendo usado por uma política de gestão.

Foco

As questões difusas do programa chamam tanto a atenção que até a deputada Jó Pereira (MDB), eleita pela base de apoio ao governo, mas que tem assumido uma postura independente, tem dificuldade de apontar onde a pobreza, depois de combatida, deixou de existir. Ela contou à Gazeta que desde a criação do Fecoep essa resposta foi dada.

“Infelizmente, nunca o Fecoep, desde a sua criação, respondeu essa pergunta. E isso ocorre pela falta do Plano Estadual de Combate à Pobreza, que traria a necessidade de indicadores de monitoramento da extrema pobreza e como os investimentos estão impactando na redução dessa extrema pobreza”, explicou Jó.

Estudiosa do assunto, a deputada lembra que, por força da Emenda Constitucional 93/2016, o governo Renan Filho pode desvincular da receita do Fecoep até 30% de todo o recurso arrecadado. Para a parlamentar, o país precisa parar de estabelecer impostos com apelos sociais, a exemplo da CPMF – já extinta -, envolvendo o sentimento de compaixão dos brasileiros.

“O Fecoep, em um estado pobre como o nosso, deve ser porta para a entrada de mais recursos através de convênios, parcerias e doações, e isso é possível com a identificação de populações alvo e planejamento da transformação. Assim agindo, o governo estadual poderia arrecadar milhões através de parceiros nacionais e internacionais, e parte dos recursos do Fecoep seria para a elaboração dos projetos e para a contrapartida quando exigida. Com eficiência e determinação é possível transformar os 200 milhões em bilhão e mais rapidamente retirar irmãos alagoanos da extrema pobreza. Talvez um sonho, talvez não, talvez apenas precisamos acordar para sonhar sonhos realizáveis como esse. Alagoas precisa acordar para um mundo não mais globalizado, e sim interligado, onde mercados e problemas já são de todos” acredita Jó.

Em um breve levantamento, com o apoio de sua equipe técnica, com base nos números apresentados pelo Portal da Transparência, de janeiro a março deste ano, o Fecoep apontava um saldo de R$ 32 milhões, referente ao primeiro trimestre. Além disso, somente no governo Renan Filho a sequência de arrecadação foi seguinte: R$ 67.022.025,26 (2014); R$ 74.875.517,25 (2015); R$ 139.026.250,83 (2016); R$ 178.483.065,65 (2017); R$ 274.774,557,30 (2018) e R$ 150.071.138,97 (até junho deste ano).

“Teoricamente, todos esses recursos acima citados devem ser investidos em programas de combate à extrema pobreza. A questão, que venho cobrando há muito tempo, e aqui volto a insistir, é que desde a criação do Fundo, há cerca de 15 anos, tais recursos não vêm sendo utilizados diretamente em seu público alvo: os alagoanos e alagoanas que estão na extrema pobreza”, reafirmou a deputada emedebista.

Gasto

Na tentativa de ajustar para o rumo certo o Fecoep, a parlamentar tem realizado pesquisas e tido acesso a projetos dentro e fora do país que apontem formas de se combater a pobreza. Isto porque, conforme apurou, dos 22 agrupamentos de naturezas distintas de projetos, apenas seis foram identificados como estando próximos do objetivo do imposto.

“Pois são projetos que, em quatro desses grupos, levam comida às pessoas vulneráveis (possivelmente parte delas estão na extrema pobreza). Sendo esses, por exemplo: cestas nutricionais; complexos nutricionais municipais fornecendo pequenas refeições; apoio à ONG CREN, com nutrição e educação, em Maceió; e distribuição de alimentos e leite oriundos da agricultura familiar. Os dois outros grupos elencados nessa condição de aproximação de objetivo são o de construção de casas populares e urbanização de comunidades e o outro, apoio às atividades do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no estado”, detalhou Jó.

A outra ponta de ações atreladas ao Fecoep pesquisados pela deputada são: 11 agrupamentos atendem a diversos segmentos da sociedade, estando, em sua esmagadora maioria, distantes da condição de extrema pobreza. São esses agrupamentos fornecedores de atividades de acesso à água; fomento à agricultura; apoio ao tratamento de dependentes químicos; atividades com reeducandos; apoio ao trabalhador; apoio a universitários e a arranjos produtivos e empreendedores.

“Pontuo que esses grupos estão funcionando em complementação a programas estaduais e federais, e/ou como única alternativa de recursos. Tal fato ocorre porque verbas próprias e federais existentes para a finalidade de políticas públicas necessárias deveriam naturalmente ser existentes, todas previstas em orçamentos públicos, sem previsão de uso do Fecoep”, destacou Jó.

Para concluir, ela lembra justamente os demais investimentos feitos para atendimento do público em geral e não especifica e predominantemente abaixo da linha da pobreza. Leia-se: a construção de infraestrutura nas áreas da saúde, educação, hídrica, assim como aquisição de equipamentos para uso por secretarias de estado em construção de hospitais, escolas, barragens e seus equipamentos.

“Aqui registro que todos nós, alagoanos, podemos ser beneficiários, independente da condição econômica, estando estes grupamentos totalmente fora do foco do combate à extrema pobreza”, concluiu a deputada.

A julgar pelos dados apurados, a situação da pobreza no Estado e ausência de uma política concreta para sua erradicação, oficialmente, as medidas adotadas não têm esse fim. Até porque, se isso ocorrer, não haverá como justificar a cobrança do imposto. Logo, os pobres de Alagoas deverão continuar sendo parte da paisagem das periferias do interior e da capital. Erradicados mesmo, apenas das transmissões ao vivo do chefe do Executivo e dos secretários de governo.

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