Fui convidado para fazer minha primeira matéria especial para o jornal Gazeta de Alagoas, do qual sou estagiário. Passei uma semana nervoso e me preparando. Na véspera do dia, perguntei ao repórter: “Como vai ser? Eu nunca fiz uma matéria assim e estou nervoso”. Mas a resposta foi curta e direta: “Se você não fizer a primeira, nunca vai fazer a segunda”.

Então tá certo. Não consegui dormir, só pensando: “Como é que eu, um estudante de Jornalismo, iria pela primeira vez encarar um desafio desses?”.

Muitas interrogações, cabeça confusa, fui o primeiro a chegar à Redação e já passei um zap para o Ailton Cruz (repórter fotográfico), perguntando o que houve. Estava ansioso para ver e conhecer o índio Ruan. Partimos em direção à tribo, percorremos 84 km. Chegando lá, estava o jovem Wassu, com sua tia e professora, em uma barraquinha de caldo de cana, às margens da BR 101.

O jovem índio, um rapaz franzino, medindo 1,75 m, e muito sorridente. Já fomos direto para a sala de aula, que era ali pertinho, para fazer a primeira pauta jornalística da minha vida.

Ruan Máximo, 20, um índio da tribo Wassu-Cocal, que superou a dificuldade da vida em uma reserva indígena, na cidade de Joaquim Gomes-AL, para ser aprovado no curso de Jornalismo na Universidade de Brasília (UnB).

Tudo começou ao assistir à televisão na casa simples e humilde da avó, quando criança. O contato com os meios de comunicação sempre deixou Ruan fascinado. Mas foi quando passou a assistir aos telejornais que o jovem índio descobriu a sua paixão pelo jornalismo. “Foi amor à primeira vista”, garantiu.

O amor ficou cada vez mais direcionado com o passar do tempo e se uniu a outra paixão, que o indígena divide com a maioria dos brasileiros: o futebol. Foi ao assistir a um programa dominical que atravessou gerações, levando os acontecimentos da semana no mundo do esporte – o “Esporte Espetacular” -, que Ruan decidiu que queria ser um jornalista esportivo.

“No momento em que eu passei a assistir aos telejornais, principalmente os esportivos, foi que eu me apaixonei, principalmente pelo amor muito grande que eu tenho pelo futebol. Quando eu assistia ao Esporte Espetacular, aos domingos, eu passei a me imaginar, um dia, apresentando o programa, sendo um jornalista esportivo”, declarou, com um sorriso discreto no rosto.

Se foi na frente da TV que Ruan descobriu a sua paixão, a sala de aula trouxe à tona a vocação. Desde os seus primeiros passos na vida, na Escola Estadual Indígena Marlene Marques dos Santos, o dedicado estudante já se destacava pela sua excelente produção textual.

O tempo passou e a fase pueril da vida deu lugar à adolescência. Com ela, chegou ao fim o ensino fundamental e se iniciou a reta final do ensino básico. Assim, Ruan se transferiu para a Escola Estadual Indígena José Máximo de Oliveira e teve que atravessar a BR 101, que fica entre os dois educandários.

Não demorou para o estudante tornar-se a liderança da sua turma e ser o incentivador número um dos seus colegas. O ambiente da sala era familiar. Sua professora de Língua Portuguesa, Cleide Hermínia Máximo, também era a sua tia. Porém, essa relação de parentesco tinha que ser bem administrada pela educadora.

“Eu, por ser professora e tia dele, tinha que pegar mais no pé dele, para não parecer que ele só tirava notas boas porque era sobrinho da professora. Nunca dei colher de chá a ele. Se vacilasse um pouquinho, eu puxava logo a orelha. Eu era a professora chata da escola”, afirmou Cleide, aos risos.

Ruan e a professora Cleide Hermínia Máximo
Ruan e a professora Cleide Hermínia Máximo na sala de aula

Antes de conquistar Brasília, Ruan já fez história na rede de ensino na região. Ele foi o aluno destaque da primeira turma a concluir o ensino médio dentro da aldeia Wassu-Cocal. “Sempre dedicava-se e não gostava de nada fácil. Buscava mesmo”, acrescentou a professora.

Mesmo considerando a turma como a melhor que lecionou, Cleide lamentou a evasão escolar, realidade triste na frágil e ignorada rede indígena de escolas. Mas, a professora fez questão de exaltar a conquista do aluno e sobrinho.

“Alguns pararam, ele continuou e pretende ir além. Ele sempre teve esse sonho – eu digo sonho porque ele sempre acreditou, apesar de a família ser humilde – e nunca desistiu. Ele sempre dizia que queria ser jornalista. Para mim é um privilégio, como tia e professora, contribuir para que ele chegasse onde chegou”, declarou.

Ruan foi o aluno destaque da primeira turma a concluir o ensino básico no Wassu
FOTO: Ailton Cruz

Para marcar esse momento histórico no Wassu, a turma de Ruan idealizou a sonhada e merecida formatura. Porém, com as muitas dificuldades, a inesquecível comemoração quase nunca saiu do papel. “Foi muita luta. Muita luta mesmo”, afirmou o índio. Foi aí que apareceu novamente o aluno destaque para tomar a liderança e levantar o ânimo dos colegas abatidos.

“Algumas pessoas da minha classe queriam desistir, mas eu chegava perto com umas colegas minhas e dizia que não era a hora de desistir, que passamos por muitas dificuldades para chegar até aqui”, relembrou Ruan.

Com o astral dos colegas revigorado, o líder da classe teve a ideia que levantou fundos e tornou possível a realização do evento. “Eu tive a ideia de pedir dinheiro na pista, nas casas e conseguimos. Somos conhecidos como povo guerreiro”, afirmou o estudante. Mais uma vez, Ruan foi decisivo em mais um momento importante. “Guerreamos, fomos à luta e conseguimos”, recorda, orgulhoso, o índio.

Ruan Toada Lá no pé do Cruzeiro Jurema
Índio Ruan, cantando Toada no morro da pedra da Torre

Nas andanças pela aldeia, Ruan sempre contava à reportagem histórias sobre a tribo. Orgulhoso, falava com brilho nos olhos. A mais marcante delas foi quando estávamos no carro, seguindo por um caminho ladeirado de terra que se estendia por três quilômetros e uma linda vista nos encantou. Tratava-se da Pedra da Torre, um monte que, no seu pico, apresentava “fissuras” que se assemelham a arranhões. O local leva esse nome por estar situado perto da região Torre, onde o estudante mora com sua mãe e irmãos.

Por tratar-se de um local sagrado, ele explicou que é necessária uma preparação para subir ao monte, que consiste em um retiro espiritual por até uma semana. “É preciso passar dias orando. Quem não se prepara, não consegue ir”, contou o índio. É um lugar que tem um significado poderoso para o povo Wassu-Cocal, especialmente para Ruan. Ele nos diz que, nas horas difíceis, costuma orar virado para o local para pedir forças. Mas que também tem o hábito de cantar toadas para a Pedra, um momento de conexão divina.

Vestibular e o momento indescritível

Ao tomar conhecimento da realização do vestibular para a Universidade de Brasília (UnB), na cidade de Palmeira dos Índios, por meio do seu amigo e uma das lideranças da tribo, Marcelo, Ruan teve que correr contra o tempo. Todo o processo foi às pressas. Faltavam poucas horas para o encerramento das inscrições, quando o índio conseguiu as assinaturas das lideranças da sua aldeia para garantir a sua vaga.

Oficialmente vestibulando, Ruan não teve o tempo que julgou como necessário para estudar bem. Ele só tinha cerca de oito dias para se preparar para o dia mais importante para um estudante. “Apenas orei a Deus e pedi a Ele sabedoria para me iluminar na hora da prova”, relembrou.

“Eu comecei a estudar, fazer perguntas às lideranças em questão à comunidade e comecei a aprofundar os meus estudos sobre a origem indígena, pois a prova tinha um conteúdo sobre isso. Eu resolvi fazer tudo isso e tentar obter um bom desempenho”, falou, ao explicar a sua preparação para o importante dia.

Como se já não bastasse o curto período para se organizar até a data da prova, surgiu outro problema: o custo da viagem para outra cidade e de se manter nos três dias de vestibular. Depois de muita preocupação, Ruan conseguiu driblar esse empecilho. Com mais oito estudantes de Wassu-Cocal, ele organizou uma vaquinha e conseguiu arrecadar o dinheiro necessário para todos.

No Dia D de Ruan, as preces foram repetidas momentos antes da prova. “Quando eu cheguei lá e entrei para fazer a prova objetiva de Redação, pedi novamente força e sabedoria para que eu pudesse concluir, com sucesso, o vestibular”, relatou o estudante. E assim se fez!

Um mês depois saiu o veredicto. Ao acessar o Whatsapp, como de costume, o índio se surpreendeu com a quantidade de mensagens, parabenizando-o pela grande vitória. Ruan estava aprovado em uma das melhores universidades da América do Sul: a UnB. Com a grande notícia, o estudante não conseguiu segurar as lágrimas e comemorou muito com o povo da sua aldeia. “Um sonho de criança. Um sonho que está sendo realizado aos poucos”, disse o índio sonhador.

Orgulho e apoio da família em agradecimento pela glória alcançada.

Assim que fomos em direção ao mercadinho do Seu Cícero, pai de Ruan, ele se demonstrou preocupado. “Meu pai é daqueles caras brutos. Não gosta de tirar fotos nem fazer filmagens, mas acho que ele vai falar”, alertou. Avisados e preparados para um possível banho de água fria, fomos insistentes e seguimos no caminho.

Quando chegamos, todo o medo da frustração de não conseguirmos falar com o pai acabou-se no mesmo instante. Ao invés de uma cara fechada, encontramos um mar de simpatia no formato de uma pessoa. Seu Cícero fez questão de nos receber bem. Ele até ofereceu refrigerante e bolinhos para a nossa equipe. “É por conta da casa”, falou, ao entregar o lanche.

Mesmo sendo um homem de poucas palavras, Seu Cícero explicitou a felicidade pela conquista do filho. “A gente fica muito feliz pelo empenho dele. Ele é um sonhador”, disse o pai, olhando Ruan nos olhos. O veterano Wassu ainda alegou estar incrédulo com o resultado do vestibular. “Nem parece que a ficha caiu”, afirmou.

Seu Cícero não consegue esconder o orgulho que sente do seu filho
FOTO: Ailton Cruz

Ao saber que o filho queria ser jornalista, o pai via o caminho mais longo e com mais obstáculos para um índio tornar-se um comunicador. “Eu achava um negócio difícil”, alegou Cícero. Mas, mesmo com as dificuldades, estava sempre depositando confiança e torcendo por Ruan.

“Nós não temos condições financeiras e o curso de Jornalismo é muito caro pra gente. Ele botou na cabeça que queria ser jornalista e aconteceu de estar no próximo passo para realizar o sonho dele e eu tô muito feliz. Talento ele tem”, afirmou o pai, admitindo a dificuldade, mas com fé no sucesso do filho.

Depois de percorrer três quilômetros em uma estrada de terra, chegamos ao lugar onde mora Ruan. Lá, encontramos uma senhora sentada numa cadeira, refrescando-se à sombra de uma árvore em um dia típico de calor. Era Maria José, mãe do índio prodígio. “Não achava que vocês viriam até aqui”, afirmou, com sua voz baixinha, transpirando simplicidade.

Assim como todos na aldeia, ela nos tratou com bastante atenciosidade e fez de tudo para deixar a nossa equipe à vontade. Ao falar de Ruan, a mãe chega a encher os olhos de lágrimas e do orgulho que tem pelo filho. “Eu tô muito surpresa”, falou.

“Eu fiquei muito orgulhosa. Fico só orando que dê tudo certo. Às vezes eu nem acredito que ele vai viajar, que vai estudar para ser jornalista. Eu quero que ele siga em frente e não desista, que Deus estará sempre ao lado dele e ele vai conseguir o que quer”, afirmou a mãe, com os olhos marejados.

Dona Maria foi a incentivadora número um de Ruan (à direita) e de sua irmã Kleane (à esquerda), a Pelezinha, que sonha em ser jogadora de futebol profissional
FOTO: Ailton Cruz

Dona Maria relembra com muito carinho quando soube da grande notícia. “Quase tive um treco”, afirmou a mãe, com risadas. Porém, nem tudo são flores. A jornada para alcançar o sonho continuará e, até lá, Ruan terá que lidar com muitas barreiras. A principal é a saudade de casa. “Se eu pudesse, eles não sairiam daqui”, brinca Maria José.

Com a paixão pelo telejornalismo e entretenimento televisivo enraizado desde pequeno, era nítido que Ruan tivesse suas influências vindas dali. Quando conversamos sobre grandes nomes da telinha, o jovem lembrou imediatamente de Alex Escobar e Luciano Huck, apresentadores do Globo Esporte e do Caldeirão do Huck, respectivamente, programas que o índio não perde por nada. “Quero ser como eles”, afirma, sorrindo, o estudante.

Dentro da tribo, o jovem também tem grandes inspirações. Depois do pai e da mãe, Ruan fala com bastante carinho sobre o Cacique Jeová, uma grande liderança do Wassu e símbolo de luta pela educação indígena. “Ele me ensinou a sempre levar a minha cultura comigo. Eu serei um índio em qualquer canto onde eu estiver”.

Logo na entrada da pequena Escola Indígena José Máximo de Oliveira, estão, além da placa com a foto da histórica turma que Ruan fez parte, a homenagem para Jeová. Entre seus maiores ensinamentos, o lendário Cacique sempre pregou o elo que a escola estabelecia entre as famílias na comunidade e a cultura Wassu-Cocal.

Placa de formatura da turma de Ruan, a primeira a concluir o ensino médio dentro da aldeia
FOTO: Ailton Cruz

Dificuldades

Quando cursava o ensino médio, Ruan caminhava em uma estrada de barro por três quilômetros na escuridão da noite. Algumas vezes, o jovem teve até que lutar contra a fome que o acompanhava, durante a sua jornada para a sala de aula, e via nos familiares a força para continuar em busca do seu sonho.

Ruan Meu notebook e as dificuldades da família
Meu notebook e as dificuldades da família

“A dificuldade é imensa, eu quero ter as coisas para estudar computador e não tenho. Meu notebook está em condições péssimas, não funciona, está quebrado. Às vezes boto ele assim perto de mim e fico imaginando: eu no meu escritório, algo desse tipo, e estudando, né, fazendo minhas matérias. É muita coisa e não tenho condições, mas um dia eu vou ter, poder dar uma condição melhor para a minha família, não perco a esperança!”, disse.

“Eu cheguei a pensar em desistir muitas vezes. São muitas dificuldades. Mas, quando eu penso na minha família, eu encontro a motivação para passar por cima de tudo isso e seguir em frente. Eu faço tudo por eles”, continuou o índio, emocionado.

Ao falar das dificuldades, Maria José, mãe e motivação de Ruan, abriu o coração. “Mãe de família sofre dentro de casa. Dói o coração olhar o armário e, às vezes, não ter nada. Eu tenho umas varizes fortes na perna, mas eu trabalho muito aqui na roça para não faltar nada dentro de casa. Minhas pernas doem, mas eu não consigo ficar parada. Eu faço tudo por eles (os filhos). Eles são o motivo para eu não desistir”, desabafou Maria, em lágrimas.

Nosso Lar
Índio Ruan Maximo, contando sua história em sua Casa

Quando conversávamos sobre as inspirações na televisão, Ruan falou bastante sobre Luciano Huck e revelou que sonha, um dia, conhecê-lo. Ele viu no quadro “Lar doce lar” do programa, aos sábados, a oportunidade de realizar o grande momento. Com o decorrer da conversa, também contou que já tentou o contato via redes sociais e até chegou a escrever uma carta para Huck, mas não obteve resposta do apresentador.

“Meu sonho é conhecê-lo. Sonho muito com ele vindo aqui na minha casa para fazer o ‘Lar doce lar’ aqui comigo. Eu até escrevi uma carta para ele, mandei mensagem no direct do Instagram, mas ele nunca falou comigo. É quase que impossível ele vir num canto tão longe como aqui, mas eu ainda acredito”, falou o esperançoso índio.

Situação indefinida em Brasília

No caminho em busca do seu sonho, Ruan superou muitas barreiras e situações difíceis, até conseguir a entrada na Universidade de Brasília. Porém, as dificuldades ainda continuam presentes na vida do indígena Wassu. O início das aulas está programado para o primeiro dia do mês de fevereiro de 2021 e Ruan ainda não sabe como vai se manter lá, uma vez que não tem lugar para ficar e nem como custear a vida na capital brasileira.

Por Daniel Oliveira | Portal Gazetaweb.com

FOTO: Ailton Cruz